A Dilma, da rua

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Eu vinha saindo do Extra e avistei do lado de fora a Dilma e a mãe dela. Dilma de franja reta, meio índia. E me lembrei da história dela, que mora na rua e vive de pedir esmolas e catar restos nas lixeiras, não só para vender como para comer, como já observei. Sua mãe também vive por ali com ela e estão sempre brigando. Quem mora em casa, na Asa Norte principalmente, é muito comum conviver com moradores de rua de perto. Muitos deles vivem por ali desde que éramos crianças. Então a gente vai sabendo os nomes deles (e eles os nossos), depois conhecendo mais e tendo proximidade. Não é raro a gente sair de casa e eles estarem na porta, ao lado, sentados sozinhos, ou em dupla, ou em grupo, nos meio-fios. As vezes rola uma conversa. Minha mãe sempre dá comida, não me importa se isto é correto ou não (ela diz). São muitas histórias e pessoas,  vou contar de algumas, depois finalizo com a Dilma. Começarei pela Ladjane, uma moça da idade da minha irmã, mas que parece o dobro. Ela tem uma penca de filhos e netos e anda com eles num carrinho tipo caixote de madeira, que ela puxa. Vimos vários nascer e todo ano chega mais um, é incrível. Ladjane é sorridente, quando passamos por ela todos os filhos dão tchau e agora, gritam “manda um beijo pra Helena e pro Heitor”. Além dos nossos nomes, ela sabe o nome dos nossos filhos e ensina pros dela. Tinha também o Adeilton morador de rua também negro, como a Ladjane. Faleceu afogado no Lago Paranoá, embaixo da Ponte do Bragueto. Já não tinha nenhum dente na boca e era completamente alcoólatra. Adeilton conviveu na minha rua com a gente desde bem pequeno. Ainda novinho meu pai investiu um pouco nele. Prometia todo ano o material escolar completo e cumpria. Adeilton foi uma criança linda, negro da pele bem escura, os dentes lindos e um olhar doce, cheio de pestanas alegres. Ele carregou esse olhar por toda a vida. De repente ele cresceu. Moravam todos ali atrás do antigo Colégio Alvorada numa invasão na época conhecida como Cerrado. Então tinha uma turma de crianças moradoras do Cerrado que andava na minha rua. Éramos amigos, andávamos de carroça às vezes com eles, brincávamos na rua. Lembro que as vezes uma vizinha passava a tarde no jardim tirando bichos de pé dos nossos amigos do Cerrado. E as outras crianças assistindo. Outra vez morreu uma égua de um deles, do Décio, no jardim da minha mãe. Ela estava prenha. Foi comovente vê-la deitada na grama, respirando ofegante, com a barriga enorme e os bombeiros do lado. O Décio e outras crianças ao redor (inclusive eu) aos prantos. Depois estas pessoas foram transferidas pelo governo do Roriz para Samambaia, uma cidade satélite criada há uns anos aqui no DF. Muitas destas crianças que frequentaram a rua continuaram sempre ali pela 716, perambulando, agora adultos é claro. Fizeram dali um ponto de mendicância ou de referência, sei lá. Vimos eles crescerem. Eles apareciam de carroça ou a pé. Íamos sabendo notícias por eles mesmos, um matou um cara por causa de uma dívida de um tênis, que o outro estava atrás. Muitos foram presos. Minha irmã visitou um deles na Papuda uma vez. O outro trabalhava numa oficina perto mas eu sabia que vendia armas. Uns casaram e estavam bem, morando em Samambaia. Eram muitas notícias, das mais diversas e inusitadas. A mãe de um deles a Dona Rita, começou a vender doces num ponto da cidade que até hoje é dela. Ela foi faxineira da minha mãe. Hoje vende balas no sinal da W3 sul perto da Escola Dom Bosco. Eu passo lá compro dela, às vezes não dá e eu buzino de longe, ela sabe que é alguém lá de casa e dá tchau, tão bonitinha com a cabeça branquinha. Um dia ela enfiou a cabeça no carro e me deu um beijo, cheirosa. Meu marido tomou um susto e depois comentou achando até graça “Nossa Joana vocês da sua casa conhecem todos os mendigos de Brasília.” Muitos ele conhece também, como bom morador da Asa Norte. Pra finalizar vou contar, resumidamente, o final trágico da Dilma. Ela frequenta há muitos anos a região do final da Asa Norte, fica por ali, mora por ali. Quando a conhecemos de cara vimos uma mulher marcante, magrinha, cabelo liso com uma franja doida bem curta meio cult, sempre cheia de adereços, brincos, batom. O rosto bonito, um olhar forte caramelo. Ela puxava assunto de uma forma lúcida. Dava pra confiar nela, no que dizia. Nos empenhamos em ajudá-la. Ela e sua família moravam numa tenda de lona ao lado do Caje (onde menores infratores ficavam presos), próximo à antiga casa dos meus pais. Às vezes Dilma estava muito bêbada (hoje está sempre). Tinha cinco filhos. Hoje não tem mais e eles não morreram. Já o seu irmão foi assassinado ao lado dela. Era seu braço direito. Isto a desequilibrou mais ainda. Todo um longo e doloroso processo a fizeram perder a guarda de todos os seus filhos. Eles foram adotados, com exceção do Fabiano um mais velho, que fugiu do lar que os acolheu antes da adoção, ou não quis ficar lá, não sei. Já era pré-adolescente, esperto. Hoje é um adulto, fcou até bem, trabalha numa ONG e parece ter tomado as rédeas da sua vida. A Stefany, sua única menina, foi a primeira a sair do lar pra ser adotada, separada dos irmãos. Eu e meu pai fomos algumas vezes ver as crianças neste orfanato, no Núcleo Bandeirantes. A própria Dilma me disse o nome do lugar onde eles estavam e eu descobri o endereço. Eles foram tomados pelo Conselho Tutelar. Ela realmente teve chances para mudar. Ouvi dizer dela e do próprio orfanato, que é da Comunhão Espírita, que ela ganhou uma casa. Mas não conseguiu administrar sua vida e perdeu tudo inclusive o Pátrio Poder dos filhos e agora sua lucidez completamente. Quem deveria cuidar dela? O que acontece com essas pessoas? São almas loucas, espíritos perdidos, em busca de Deus ou de luz, jogados neste planeta como mortos-vivos em busca de regeneração? Não sei. São explicações que acho pra me confortar. Sei que hoje vejo Dilma por aí. Sempre ao lado da mãe, as duas bêbadas tresloucadas, não raro brigando, batendo boca, se xingando com ofensas e palavrões. Certa vez vi uma cena inusitada, eu estava saindo de carro da Câmara dos Deputados e me deparei com mãe e filha descendo a rampa do Congresso Nacional em direção à chapelaria, entrada principal. Era um dia normal, as duas estavam imundas e uma delas carregava uma enorme bandeira do Brasil nas costas. Eu estava dentro do carro e elas não me viram. Também não reconhecem mais ninguém. Observei elas descendo em fileira, uma atrás da outra. A Dilma por último levando a bandeira. Um sol escaldante. Será que elas conseguiram entrar?

(18/02/10)

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